29/01/2013

DIA DA SAUDADE


Sau(da)de

 

Suzana Feldens Schwertner

Psicóloga, Doutora em Educação, Professora do Curso de Psicologia do Centro Universitário Univates, Psicóloga da CURES/Univates.

 

 

Chega de saudade
A realidade é que sem ela não há paz
Não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim, não sai

(Chega de Saudade, Tom Jobim)

 
O que poderia estar lendo esta humilde mulher naquela carta, com uma expressão triste e, quem sabe, preocupada? Que sentimento poderia ela estar ali manifestando? Para o pintor e desenhista brasileiro Almeida Júnior, trata-se de “Saudade” (1899), obra exposta na Pinacoteca de São Paulo. Eis uma temática a partir da qual muitas músicas foram escritas (basta lembrarmo-nos da famosa Chega de Saudade, de Tom Jobim – que abre este texto), poemas foram elaborados (quem nunca declamou os versos de Casimiro de Abreu Oh, que saudades que eu tenho Da aurora da minha vida Da minha infância querida Que os anos não trazem mais), ditos foram replicados: saudade é a dor da ausência; de que adianta voltar se do que se tem saudade é, não daquele lugar, mas daquela felicidade. Há, ainda, os que falam de saudade daquilo que não se viveu; outros, em saudade de nós mesmos e de nossas diferentes facetas ao longo da vida. Atualmente, algumas pesquisas nos mostram, inclusive, uma nostalgia precoce de jovens e crianças (Fischer, 2008; Schwertner e Fischer, 2012) em relação a um passado nem tão longínquo assim.

A palavra saudade, conforme o dicionário Houaiss, vem do latim solitas, solidão, ou de solus, só, solitário: sentimento mais ou menos melancólico de incompletude, ligado pela memória a situações de privação da presença de alguém ou de algo, de afastamento de um lugar ou de uma coisa, ou à ausência de certas experiências e determinados prazeres já vividos e considerados pela pessoa em causa como um bem desejável. Ainda bastante discutida, outros dicionários apresentam versões que indicariam, do árabe, um sentimento ruim; ainda, há a explicação que a expressão viria de saúde, ou mesmo de saudar.

O que sabemos, em definitivo, é que se trata de uma palavra específica da língua portuguesa, de difícil tradução, que exprime com precisão um estado de espírito – que até pode ser dito de outras formas nas mais diferentes línguas, mas não com apenas uma palavra. Talvez eis aí o motivo para a comemoração do Dia da Saudade.

Entendida muitas vezes como um sentimento negativo, ou que evoca sensações melancólicas, a saudade pode ser um sentimento bom, que remete a uma nostalgia, a uma vontade de reviver momentos e reencontrar pessoas. Pois o mesmo artista que a tratou como sinônimo de melancolia, atribuiu à saudade a capacidade de fazer o reencontro ser ainda mais emocionante – na letra de Tom Jobim: Mas se ela voltar, se ela voltar Que coisa linda, que coisa louca Pois há menos peixinhos a nadar no mar Do que os beijinhos que eu darei Na sua boca (Chega de Saudade, Tom Jobim).

Para a psicologia, é possível destacar a palavra saúde que está imersa na palavra saudade: sau(da)de. O sentimento mexe com nossas lembranças e com nossa memória, que são aspectos característicos e fundamentais dos seres humanos. Assim como pode contribuir para nossa saúde, nos constituindo como um ser de relacionamentos, que aprende a se vincular e a se separar de outras pessoas, a saudade em demasia também pode afetar nossa saúde. Quem já não ouviu falar sobre o saudosismo e a necessidade de reviver, no presente, toda uma vida e experiências que não retornam mais, naquela mesma forma? Não se trata de querer fazer desaparecer todas as nossas lembranças, mas de conseguir rememora-las com saudade sem deixar de viver sua vida, não transformando a saudade em patologia. Cabe aqui lembrar o aclamado filme de Michel Gondry, Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004), que teve como mote a tentativa de apagar da mente de um homem as lembranças e vivências com sua amada, pois estas lhe causavam muito sofrimento. Porém, essa busca se revela impossível, pois certos traços de memória persistem em aparecer e marcar a história do personagem de Jim Carrey.

Outros aspecto que podemos destacar é a denominada “saudade do lar” (ou homesickness), que é uma forma de sofrimento relacionada a este sentimento e ocorre na vida de jovens universitários que se deslocam a grandes centros urbanos, ou mesmo para cidades do exterior, com o objetivo de vivenciarem diferentes locais de estudo e de aprimorar sua formação. Muitos perdem o contato com a vida usual que tinham até então, deparando-se com novos relacionamentos, novos desafios e a saudade da família, que é saudável e faz parte deste processo, mas pode vir a se tornar algo penoso e impeditivo de seguir com as novas atividades. O luto também pode ser considerado uma manifestação de saudade e igualmente faz parte do processo da vida – contudo, quando começa a produzir efeitos de distanciamento da família, do trabalho, do convívio social, pode servir como alerta para uma maior dificuldade em lidar com este momento e solicitar a necessidade de uma ajuda profissional.

Por mais paradoxal que este sentimento possa parecer (bom, ruim, difícil, sofrido, nostálgico, doce), vale lembrar que, como nos indica o psicanalista Celso Gutfreind, parte importante dos vínculos depende de se despedir e a saudade nos ensina a entender o valor dos nossos relacionamentos. Voltemos à humilde mulher da imagem: poderia ela estar sorrindo suavemente por trás daquele manto; ou iniciando um choro tristonho: o certo é que a carta remete a alguém com ela fortemente vinculada e a saudade trata, especialmente, disto. Celebremos o Dia da Saudade lembrando de pessoas importantes, com quem nos vinculamos e mantemos lembranças/memórias/histórias.

 

Curiosidade: Expressões equivalentes em outras línguas: "tosca" (Rússia); "Sehnsucht" (Alemanha); "shauck" (Arábia); "jal" (Sérvia e Croácia); "natsukashi" (Japão); "sóvárgás" (Hungria).

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