Sau(da)de
Suzana Feldens Schwertner
Psicóloga, Doutora em Educação, Professora
do Curso de Psicologia do Centro Universitário Univates, Psicóloga da CURES/Univates.
Chega de saudade
A realidade é que sem ela não há paz
Não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim, não sai
A realidade é que sem ela não há paz
Não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim, não sai
(Chega de Saudade, Tom Jobim)
A
palavra saudade, conforme o dicionário Houaiss, vem do latim solitas, solidão,
ou de solus, só, solitário: sentimento
mais ou menos melancólico de incompletude, ligado pela memória a situações de
privação da presença de alguém ou de algo, de afastamento de um lugar ou de uma
coisa, ou à ausência de certas experiências e determinados prazeres já vividos
e considerados pela pessoa em causa como um bem desejável. Ainda bastante
discutida, outros dicionários apresentam versões que indicariam, do árabe, um
sentimento ruim; ainda, há a explicação que a expressão viria de saúde, ou
mesmo de saudar.
O
que sabemos, em definitivo, é que se trata de uma palavra específica da língua
portuguesa, de difícil tradução, que exprime com precisão um estado de espírito
– que até pode ser dito de outras formas nas mais diferentes línguas, mas não
com apenas uma palavra. Talvez eis aí o motivo para a comemoração do Dia da
Saudade.
Entendida
muitas vezes como um sentimento negativo, ou que evoca sensações melancólicas,
a saudade pode ser um sentimento bom, que remete a uma nostalgia, a uma vontade
de reviver momentos e reencontrar pessoas. Pois o mesmo artista que a tratou
como sinônimo de melancolia, atribuiu à saudade a capacidade de fazer o
reencontro ser ainda mais emocionante – na letra de Tom Jobim: Mas
se ela voltar, se ela voltar Que coisa linda, que coisa louca Pois há menos
peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei Na sua boca
(Chega
de Saudade, Tom Jobim).
Para
a psicologia, é possível destacar a palavra saúde que está imersa na palavra
saudade: sau(da)de. O sentimento mexe com nossas lembranças e com nossa
memória, que são aspectos característicos e fundamentais dos seres humanos.
Assim como pode contribuir para nossa saúde, nos constituindo como um ser de
relacionamentos, que aprende a se vincular e a se separar de outras pessoas, a
saudade em demasia também pode afetar nossa saúde. Quem já não ouviu falar
sobre o saudosismo e a necessidade de reviver, no presente, toda uma vida e
experiências que não retornam mais, naquela mesma forma? Não se trata de querer
fazer desaparecer todas as nossas lembranças, mas de conseguir rememora-las com
saudade sem deixar de viver sua vida, não transformando a saudade em patologia.
Cabe aqui lembrar o aclamado filme de Michel Gondry, Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004), que teve como
mote a tentativa de apagar da mente de um homem as lembranças e vivências com
sua amada, pois estas lhe causavam muito sofrimento. Porém, essa busca se
revela impossível, pois certos traços de memória persistem em aparecer e marcar
a história do personagem de Jim Carrey.
Outros
aspecto que podemos destacar é a denominada “saudade do lar” (ou homesickness), que é uma forma de
sofrimento relacionada a este sentimento e ocorre na vida de jovens
universitários que se deslocam a grandes centros urbanos, ou mesmo para cidades
do exterior, com o objetivo de vivenciarem diferentes locais de estudo e de
aprimorar sua formação. Muitos perdem o contato com a vida usual que tinham até
então, deparando-se com novos relacionamentos, novos desafios e a saudade da
família, que é saudável e faz parte deste processo, mas pode vir a se tornar
algo penoso e impeditivo de seguir com as novas atividades. O luto também pode
ser considerado uma manifestação de saudade e igualmente faz parte do processo
da vida – contudo, quando começa a produzir efeitos de distanciamento da
família, do trabalho, do convívio social, pode servir como alerta para uma
maior dificuldade em lidar com este momento e solicitar a necessidade de uma
ajuda profissional.
Por
mais paradoxal que este sentimento possa parecer (bom, ruim, difícil, sofrido,
nostálgico, doce), vale lembrar que, como nos indica o psicanalista Celso
Gutfreind, parte importante dos vínculos depende de se despedir e a saudade nos
ensina a entender o valor dos nossos relacionamentos. Voltemos à humilde mulher
da imagem: poderia ela estar sorrindo suavemente por trás daquele manto; ou
iniciando um choro tristonho: o certo é que a carta remete a alguém com ela
fortemente vinculada e a saudade trata, especialmente, disto. Celebremos o Dia
da Saudade lembrando de pessoas importantes, com quem nos vinculamos e mantemos
lembranças/memórias/histórias.
Curiosidade: Expressões equivalentes em outras línguas:
"tosca" (Rússia); "Sehnsucht" (Alemanha); "shauck"
(Arábia); "jal" (Sérvia e Croácia); "natsukashi" (Japão); "sóvárgás"
(Hungria).